sexta-feira, 5 de junho de 2009

GUETOS*

Nada de estranho em haver, numa cidade portuária como a New Orleans - LA do final do século XIX, um bairro destinado à prostituição. Em algum dos mais de trinta quarteirões de Storyville a música, além do sexo, era presença garantida. Os inúmeros prostíbulos tinham sempre um piano pra animar os fregueses e o revezamento dos músicos fez florescer os ritmos que resultaram daquela mistura de experiências. As manifestações culturais tipicamente negras de Congo Square ganhavam eco em Storyville.

Situada em posição geográfica privilegiada (às margens do Rio Mississipi), New Orleans catalisou a influência de instrumentistas que chegavam de todas as partes: Mississipi, Texas, meio-oeste, costa leste e até da Califórnia. Esse caldeirão cultural credenciou à cidade o título de berço do Jazz, ainda mais considerando que Louis Armstrong - um de seus seminais expoentes - nasceu do ventre de uma das prostitutas que alegravam a noite de Storyville.

Storyville foi “lacrado” em 1917 em razão do aumento da criminalidade no local, servindo também para dar o exemplo à América que enfrentava a Primeira Grande Guerra. Sem espaço para tocar, os caras acabaram tendo que subir o Mississipi.

A industrializada Chicago, dona da maior malha ferroviária do mundo, foi o destino de muitos dos músicos vindos do Sul em busca de oportunidades. Repleta de cabarés e boates, as casas eram animadas pela música de artistas que incrementavam o consumo ilegal das bebidas alcoólicas, para alegria dos contrabandistas, que acabaram lucrando com a Lei Seca dos anos 20.

Mas foi em Nova York que se concentrou a indústria do entretenimento nos EUA. E para lá rumaram os artífices do que seria reconhecida como a música popular americana, em grande parte concebida pelos negros.

Especificamente em Tin Pan Alley - um trecho da Broadway onde se situavam as principais editoras musicais de NYC – se produzia, gravava e vendia a música daqueles que antes animavam os antros de Storyville e de Chicago. A música parida no “Beco da Panela de Lata” foi notável tanto do ponto de vista comercial como da própria cultura americana, com algumas gravações alcançando a casa dos milhões de cópias vendidas.

Claro que a música acolhida pelo mercado não tratava das dificuldades vividas pos vários de seus artífices. Os temas rentáveis cantavam um falso estado de coisas; uma América de paz, harmonia e prosperidade – ideal para os consumidores esquecerem de seus problemas pessoais. O que era ótimo para os empresários, mas apenas "bom" para os músicos, estes mais preocupados em se alimentar e aqueles em enriquecer.

Em contraste com as letras que se traduziam em cifras, o clima de Tin Pan Alley não era muito dissonante dos bordéis de New Orleans e das enfumaçadas dance houses da Chicago de Al Capone.

A letra do blues “Tin Pan Alley”, escrita pelo editor musical Bob Gedding, gravada originalmente em Maio de 1953 e imortalizada pela guitarra de Stevie Ray Vaughan dá a noção do que rolava (não muito) longe dos gravadores dos predinhos da West 28th Street, entre Broadway e a Quinta Avenida: "Alley é o lugar mais inóspito no qual já estive. As pessoas que vão lá matam e morrem por whisky, vinho e gim" (tradução livre)

Vale a pena conferir a versão de estúdio, do álbum Couldn´t Stand the Weather e a - rica e intensa - versão ao vivo, do álbum In the Beginning. Embora este tenha sido lançado em 1992, traz um show de 1980 (em Austin, Texas), antes mesmo de Vaughan gravar seu primeiro disco, Texas Flood (em 1983).

Pois é. O tempo se encarregou de mostrar que os lugares mais inóspitos e marginais, injustamente tidos como sinônimo de esterilidade cultural, em verdade serviram de terreno fértil à formação de muito daquilo que hoje nos chega aos ouvidos. Seus recônditos bares acolheram instrumentistas das mais variadas origens, formações e influências.

Não há exagero em dizer que, do underground ao mainstream, devemos tudo à “vida bandida” daqueles que apontaram os holofotes da história para esses bairros malditos, valendo-se apenas da transcendência inspirada de seus instrumentos mágicos.

*coluna originalmente publicada em www.malditafutebolclube.blogspot.com

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